Da paz interior à "eco-paz"

Pelo doutor Yoichi Kawada, diretor do Instituto de Filosofia Oriental, brindou durante a Conferência Interdisciplinar sobre a Evolução da Ordem Mundial, que realizou-se de 6 a 8 de junho de 1997, em Toronto, Canadá.  Tradução não oficial para o português: Ariel Ricci. prema.ar@uol.com.br

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As chamas da ilusão enganosa. O propósito deste artigo é oferecer a perspectiva que o Budismo possui sobre a paz. Gostaria de analisar três dimensões que a paz pode abranger e a maneira como a compreensão da paz desde a perspectiva budista pode contribuir à sua conquista. Essas três dimensões são a paz interior, na comunidade e a paz ecológica ou a relação de paz com a Terra.

Gostaria de começar descrevendo uma prédica de Sakyamuni, que transmite sua visão essencial sobre a natureza e a causa do sofrimento. Sakyamuni subia em cima de uma montanha junto aos seus novos discípulos. Olhando o panorama que estendia-se sob seus pés, disse: Não há dúvida de que este mundo está consumindo-se com todas classes de fogos: o da cobiça, o ódio, a estupidez, a vaidade, as doenças degradantes e a morte; o fogo da dor, os lamentos, o sofrimento e a agonia.

O que tentava transmitir era sua compreensão de que o mundo que habitamos está envolvido nas chamas do sofrimento que originam-se nos desejos enganosos. As chamas da cobiça, o ódio, a estupidez, a fatuidade e o egoísmo que afetam o nosso coração e que são a causa fundamental do sofrimento do homem. Portanto, Sakyamuni nos insta, em primeiro lugar, a adquirir uma clara compreensão da causa fundamental do sofrimento.

O impulso ilusório da cobiça mostra um desejo e apego descontrolados pelas comodidades materiais, a riqueza, o poder ou a fama. O desejo por esse tipo de possessões crescem e multiplicam-se sem cessar, e, como sua consecução não brinda felicidade duradoura, a pessoa que aferra-se a elas está condenada ao interminável tormento da frustração.

O impulso maligno do ódio implica emoções como o ressentimento, a fúria e a inveja, que desencadeiam-se quando nossos desejos egocêntricos são frustrados. A menos que sejam controlados, tais sentimentos alcançam as proporções da destruição e da violência. Para dizê-lo simplesmente, o ódio é a violência que gera-se a partir de uma visão egocêntrica da vida.

Ignorância refere-se ao desconhecimento deliberado acerca da realidade da vida e do cosmos. É o que gera a discórdia e a rebelião contra os princípios que o governam. A sabedoria que ilumina e revela a verdadeira natureza do universo conhece-se como iluminação, enquanto que a ignorância deliberada conhece-se como escuridão fundamental, porque nubla e obscurece a luz para observar a verdadeira natureza das coisas. De todos os impulsos enganosos, o Budismo considera que a ignorância é o principal.

O Budismo define a cobiça, o ódio e a ignorância como venenos inerentes à vida; as vezes, os denomina como três venenos. O que Sakyamuni ensinou aos seus discípulos na sua prédica foi que as chamas desses três venenos e de todos os impulsos enganosos originam-se no interior da vida humana e surgem com uma violência que afeta às famílias, os grupos étnicos, as nações e a toda a humanidade.

Podemos comprovar que isso acontece no mundo de hoje, quando o impacto da cobiça descontrolada transcende ao indivíduo e cria profundas diferenças entre grupos econômicos e étnicos, e entre países, no âmbito global. A avareza das nações industrializadas tem despojado às pessoas das nações em vias de desenvolvimento das condições que lhes permitem satisfazer suas necessidades básicas. A cobiça da raça humana está vulnerando o direito que outros seres têm à própria existência.

A violência acha-se em todas partes: nas famílias, o ambiente educativo e a comunidade em geral. O ódio profundo, que remonta-se ao passado distante, engendra severos conflitos étnicos e raciais. Em alguns casos, o rancor histórico está ligado a causas religiosas ou problemas de identidade, e encontram expressão no terror e nas mortes indiscriminadas.

A ignorância deliberada sobre a verdadeira natureza da existência significa um estado de rebelião e de negação a respeito dos princípios básicos da vida e o cosmos. Pelas suas características, essa ignorância distorce a existência em todos os seus aspectos: desde o modo de vida de cada indivíduo, até os valores étnicos e nacionais. Em outras palavras, encontra-se em todos os sistemas de valores, formas de vida e perspectivas da natureza que contêm um profundo conflito com os mesmíssimos princípios que sustentam a existência, e que são, em última instância, os que governam o funcionamento do cosmos.

Ao compartilhar sua compreensão esclarecida com os outros, Sakyamuni quis ajudá-los a minimizar os efeitos destrutivos dos impulsos enganosos e transforma-los em ímpeto para a felicidade.

Um coração tranqüilo

Na Índia, o equivalente de paz é santi, que significa o estado más elevado de tranqüilidade interior; significa também a condição iluminada atingida por Sakyamuni, que as vezes denomina-se nirvana.

Uma escritura budista descreve assim o estado de paz interior: a tranqüilidade de espírito atinge-se uma vez que se superou a avareza, o ódio e a ignorância.

Tal como ilustra esta passagem, o sentido budista da paz implica o ato fundamental de superar os impulsos negativos ou venenos interiores. Controlar tais impulsos, porém, não implica conseguir um âmbito interno estático e privado; pelo contrário, representa uma atitude intensamente dinâmica, expansiva e evolutiva por natureza.

No século XIII, o budista japonês Nitiren expressou o seguinte: Ao incendiar o bosque dos impulsos negativos e ilusórios, mantemos a chama da sabedoria iluminada.

Em outras palavras, através da prática espiritual, a energia inerente aos impulsos mais destrutivos podem transformar-se na chama iluminada da sabedoria. Dessa maneira, podem neutralizar-se os três venenos, para que nunca nos provoquem confusão nem nos levem a condutas estranhas e perniciosas. Por tudo o expressado, o domínio dos instintos negativos conhece-se como tranqüilidade interior.

Nessa condição, a luz da sabedoria iluminada brilha sem que as nuvens dos impulsos perniciosos o impeçam.

Se analisam-se os ensinamentos budistas, desde as escrituras mais antigas, até as tradições Mahayana que sucederam-se no tempo, pode-se compreender que o coração da iluminação de Sakyamuni foi seu despertar à Lei da origem dependente. A essência deste conceito, que tem sido expressada de várias maneiras e analisada com grande profundidade e detalhe no Budismo Mahayana, é a interdependência entre os seres vivos e todos os fenômenos, sem exceção. Podemos compreender então que tudo o que ocorre e existe somente é possível através de sua inter-relação com todos os outros fenômenos, e que a trama de relações é de uma extensão infinita, tanto desde o ponto de vista espacial como temporal.

Essa é a base teórica do princípio da coexistência, tão importante dentro do pensamento budista.

Cada ser humano existe dentro do contexto das inter-relações que incluem aos outros seres humanos, os seres vivos e o ambiente natural. Em outras palavras, cada pessoa está sustentada pela rede interdependente da vida. Quando tomamos consciência desse princípio, podemos expandir o amor para nós mesmos para abarcar a outros num amor altruísta; somos capazes de cultivar o espírito de tolerância e empatia pelos outros.

A doutrina da origem interdependente serve de fundamento teórico para a paz. Em termos de ação concreta, revela-se como a prática da benevolência. No Budismo, a benevolência implica manter constantemente uma conexão empática com os outros, compartilhar seu sofrimento e infelicidade, e esforçar-se junto a eles para vencer aos impulsos enganosos que constituem a raiz do sofrimento, com o fim de transformá-los em felicidade, benefício e alegria.

São esses impulsos destrutivos os que conduzem ao ser humano a agir contra a lei da origem dependente. A ignorância é a força negativa mais poderosa, precisamente, porque impede que as pessoas compreendam a realidade da origem dependente, a inevitável lei que envolve e inclui a todos os seres humanos.

A ignorância é a origem da cobiça, que empurra às pessoas a satisfazer seus desejos, ainda que ao custo do sofrimento dos outros. Também leva à fúria descontrolada, através da qual tenta-se aniquilar uma situação na qual os desejos egoístas frustram-se. É por essa razão que os impulsos negativos surgidos da ignorância são sinônimo de um egocentrismo fundamental. Trata-se de um egocentrismo cego e, a longo prazo, auto-destrutivo, porque lesiona severamente a trama da vida que sustenta nossa existência.

O estado espiritual de quem luta constantemente para transcender esse egoísmo básico é de paz interna e tranqüilidade. O coração dessa pessoa acende-se com a sabedoria da origem dependente e transborda de espírito benevolente.

As cinco impurezas


A principal contribuição à paz que brinda o Budismo radica na luta contra os impulsos distorcidos e ilusórios que, enraizados nas profundezas da vida de cada indivíduo, causam enorme sofrimento e destruição ao conjunto da sociedade. No Sutra de Lótus de Sakyamuni, os efeitos destrutivos desses impulsos descrevem-se como impurezas e são classificados em cinco categorias, desde a mais íntima e pessoal, até a que corrompe toda uma época. Estas são as impurezas do desejo, do pensamento, das pessoas, da vida e da época.

Tien-tai, filósofo budista da China do século VI, referiu-se às cinco impurezas da seguinte maneira: as mais cruciais das cinco impurezas são as do pensamento e do desejo, que levam implacavelmente às impurezas das pessoas e da vida. Estas, por sua vez, geram as impurezas da época.

A categoria das impurezas do desejo define os impulsos enganosos como os três venenos. As impurezas do pensamento refere-se a um apego excessivo e irracional a idéias específicas ou ideológicas. De acordo com Tien-tai, as impurezas do pensamento e do desejo são fundamentais pelo impacto que geram no indivíduo; são as que precipitam o caos e a desintegração da família, das nações e dos estados. De geração em geração, provocam a degradação da vida, instilando ódios históricos e violência entre os diferentes povos, grupos étnicos e países. Essas forças, finalmente, estendem sua influência para toda a civilização de uma época, o que produz, como resultado, as impurezas da época.

A civilização moderna manifesta, cada vez mais, aspectos daquilo que o Budismo denomina impurezas da época. Os sinais mais claros são o materialismo crescente, o afã de domínio desmesurado, a exploração irracional da natureza, e o consumo desaforado.

Desde o fim da guerra fria, tem estourado conflitos causados pela adesão desmedida às ideologias (impurezas do pensamento). Porém, a raiz de tais conflitos encontra-se nas paixões irracionais que o Budismo classifica como impurezas do desejo; de acordo com sua perspectiva, estas estão ainda mais profundamente ancoradas na vida das pessoas e, portanto, são mais difíceis de controlar.

Num mundo onde os impulsos enganosos manifestam-se na forma dos cinco venenos descritos anteriormente, os praticantes budistas, creio, têm a missão de contribuir à conquista da paz em todos os aspectos. Em outras palavras, não deveríamos nos dar por satisfeitos com nossa própria paz interior, e sim teríamos que ampliar nosso horizonte e nosso esforço para conseguir a abolição da guerra - estabelecer a paz para toda a comunidade humana -, para alcançar um verdadeiro desenvolvimento sustentável e concretizar a coexistência harmoniosa com o ambiente natural.

O caminho do Bodhisattva no mundo moderno

Gostaria agora de analisar como a prática do Bodhisattva e da ação benevolente, baseadas numa compreensão budista da vida, podem contribuir à conquista da paz nessas três dimensões: a interior, a social e com o ecossistema.

Em primeiro lugar, considerarei a dimensão da paz interior ou serenidade do espírito e da mente. Segundo o Budismo, um bodhisattva é aquele que leva adiante ações altruístas e busca contribuir com a sociedade manifestando cabalmente as qualidades da sabedoria e da benevolência. Um bodhisattva esforça-se primeiro por transformar sua própria vida; o centro da sua luta é a realidade da existência e o esforço constante que realiza para aliviar o sofrimento das pessoas. Dessa maneira, o bodhisattva põe seu empenho em gerar alegria para si e para os outros.

A prática do bodhisattva se expressa em termos contemporâneos como revolução humana. O estado interior de quem luta para realizar a revolução humana é de tranqüilidade espiritual; a condição de serenidade exposta pelo Budismo é uma condição dinâmica de benevolência e sabedoria.

A razão de ser da Soka Gakkai Internacional (SGI) é contribuir à prática da benevolência em meio das realidades da vida cotidiana, brindando um ambiente de cooperação espiritual, sustentação e apoio. Dessa maneira, a SGI procura estabelecer a prática do bodhisattva no mundo contemporâneo.

Se bem a SGI desenvolve numerosas atividades, as mais importantes de todas são as reuniões de diálogo que realizam-se em cada comunidade. Numa sociedade onde o egoísmo sem limites tem causado profundas feridas no coração do homem, onde a humanidade está esquecendo-se da arte de conviver com a natureza, essas pequenas reuniões de pessoas de todas as idades, raças, interesses e entornos oferecem um ambiente adequado para um intercâmbio rico e refrescante. Num mundo afligido pelo abandono social, tais encontros fazem as vezes de oásis para as pessoas.

Definitivamente, os seres humanos são os únicos que podem agir pela realização dos grandes objetivos do mundo: a paz e a prosperidade da sociedade. Como organização, a SGI tem se centrado nas pessoas e no movimento pela revolução humana mediante a prática do bodhisattva. Como praticantes budistas, esforçamo-nos por construir a paz interior na vida cotidiana e, ao mesmo tempo, por contribuir à concretização da paz de nosso planeta, capacitando a cada pessoa para que desenvolva ao máximo suas virtudes únicas.

Em segundo lugar, em relação com a paz social ou a paz dentro da comunidade, as atividades culturais e educativas que realiza a SGI sustentam uma série de medidas políticas e econômicas que são propostas em diversos âmbitos e colaboram para conseguir que se façam efetivas. Tais medidas incluem a abolição das armas nucleares e a redução da brecha econômica entre países ricos e pobres.

Além disso, o conjunto dos membros da SGI impulsiona a consecução de ideais como segurança e desenvolvimento, relacionadas com as atividades das Nações Unidas. O objetivo é despertar uma clara consciência de que o ser humano deve ser o centro primordial em qualquer consideração sobre segurança e desenvolvimento.

Em relação com estes dois temas fundamentais, o Budismo expõe o princípio da não violência e nos propõe a obter uma transformação fundamental em nossa maneira de viver.

Especificamente, isso implica modificar um estilo de vida dominado pelo apego às posses materiais e estabelecer outro centrado em valores espirituais e existenciais.

Ao mesmo tempo, também significa viver de maneira solidária e altruísta, e estar dispostos a realizar todos os esforços necessários para assegurar que os cidadãos dos países em vias de desenvolvimento possam satisfazer suas necessidades básicas.

Com respeito aos direitos humanos, o Budismo reconhece a existência de uma condição de vida suprema – o estado de Buda - em todas as pessoas e ressalta que a totalidade da família humana, sem distinção, é capaz de manifestar sabedoria e benevolência ilimitadas. A contribuição ímpar do Budismo à resolução dos conflitos de raiz cultural relaciona-se com o ensino da origem dependente e com a empatia e tolerância que surgem dessa visão cósmica.

Como já se mencionou anteriormente, esse princípio estabelece que todas as coisas e todos os fenômenos são interdependentes; a totalidade do que existe manifesta o princípio ordenador do cosmos; cada fenômeno, mediante seu jeito próprio e único. Já que, tal como considera o Budismo, os impulsos enganosos são os que impedem que os seres humanos vejam a realidade, seria ótimo se cada tradição religiosa estabelecesse sua própria luta contra os três venenos, e, ao mesmo tempo, cooperar com a consecução de metas específicas. Essa é a compreensão budista do pluralismo cultural e da tolerância religiosa.

Com respeito à terceira dimensão, a paz com o eco-sistema, o Budismo sempre acentuou a necessidade de uma coexistência criativa com a natureza. A benevolência de Sakyamuni não se limitava ao gênero humano; abrangia a todo ser vivo. As bases filosóficas para o desenvolvimento sustentável podem encontrar-se nesse tipo de simbioses com o resto do mundo natural. Uma visão filosófica assim, respalda um modo de vida que está em verdadeira harmonia com o eco-sistema.

Para resolver os desafios globais que afronta a humanidade, as medidas políticas, econômicas e científicas devem ir de mãos dadas com a reforma da condição humana. Temos que estabelecer um estilo de vida que garanta a conservação da energia, a possibilidade de reciclar os recursos e a consecução de valores espirituais.

Teríamos que cultivar, como nosso objetivo supremo, uma consciência compartilhada acerca de nossa condição humana comum e uma profunda solidariedade com o organismo vivo que é a Terra. Enquanto avançamos para essa consciência, devemos desenvolver adequadamente nossa sabedoria para orientar as vertiginosas áreas da engenharia genética e das outras ciências humanas para fins benéficos. Nesse sentido, creio que as perspectivas religiosas e éticas podem e devem fazer uma importante contribuição.

Tenho a convicção de que um enfoque budista da paz possui uma importante base comum com outras tradições. Espero, sinceramente, que os círculos de amizade e de compreensão, baseados no diálogo, o intercâmbio e a cooperação, continuem a expandir-se sem cessar.

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