O General Siha
A curiosidade
Vesali, a capital da Confederação dos Vajjias, era uma
das seis grandes cidades, ao lado de Rajagaha e Savatthi. Sua prosperidade,
como centro comercial, impressionava a todos os visitantes (1). O Buda
Sakyamuni começou a visitar a área para pregar a Lei logo após a sua
Iluminação. Como resultado disto, muitos moradores da cidade foram
convertidos, e eles construíram o mosteiro de "Telhados Altos", nos
arredores de Vesali. Na ocasião desta história, Sakyamuni estava residindo
neste mosteiro.
A nobreza da Confederação dos Vajjias estava realizando uma reunião no salão
público de Vesali. O salão estava lotado com representantes de todas as
partes da Confederação e, no meio das discussões públicas, aconteceu que
alguém mencionou alguma coisa sobre o "asceta" Gautama. Ele e sua Doutrina
foram altamente elogiados por muitos dos presentes: - A Doutrina das Três Jóias - Buda, a Lei e a Comunidade (Sangha) - pregada
pelo Gautama, é verdadeiramente maravilhosa! Certamente ele é um sábio
Iluminado!
- Até mesmo o Rei do estado vizinho ao nosso, Magadha,
tornou-se um seguidor de Gautama!
Um certo general, sentado silenciosamente na assembléia, ouvia aos
comentários atentamente. A figura impressionante era o General Siha, famoso
por toda a Confederação dos Vajjias, e um piedoso seguidor da fé jainista,
há muitos anos (2).
Agora Siha estava ali, ouvindo o "asceta" Gautama ser altamente elogiado
pelos presentes, e ele teve a vontade de conhecê-lo, visitá-Lo pelo menos
uma vez.
- Eu já ouvi à respeito deste asceta antes, mas não
sei exatamente o que Ele ensina.
Naquele dia mesmo, a caminho de sua casa, General Siha foi visitar seu
mestre, Nigantha Nataputta, e lhe disse: - Reverendo, a fama dos asceta Gautama é muito grande. Eu gostaria da
fazer-Lhe uma visita e ouvir a sua doutrina.
Siha falou assim, na esperança de poder refutar Gautama na primeira
oportunidade, se ele estivesse pregando uma doutrina "falsa". Mas o mestre
jainista proibiu-o, dizendo friamente: - General Siha, o asceta Gautama não prega nada além da inação, negando a
possibilidade da vontade própria e da autodeterminação. Que necessidade tem
você, um seguidor da fé jainista ortodoxa, de ouvir tais falsas doutrinas?
Assim repreendido, General Siha não teve outra escolha a não ser desistir do
plano de ir conhecer o "asceta" Gautama.
Mas na assembléia seguinte, elogios ao "asceta"
Gautama corriam nas bocas de todos os presentes; e como a mesma coisa
aconteceu numa outra assembléia subsequente, Siha não pôde mais conter a sua
curiosidade. Decidiu-se: "o asceta Gautama deve ter qualidades excepcionais,
para que seja assim tão bem falado. Certamente não há necessidade alguma
para mim de pedir permissão ao mestre para ir ver e ouvir à pregação de
Gautama". Assim, Siha apressou-se para casa e saiu outra vez, acompanhado de
seus atendentes pessoais, para visitar o Buda, que estava pregando no
mosteiro de "Telhados Altos".
Transformando a crítica em elogio
Com seus modos suaves e gentis e uma aparência nobre, a forma do Buda
parecia irradiar luz. Só por vê-Lo, Siha foi tomado pela emoção, e seu corpo
tremeu. O Buda notou que Siha olhava-o à distância, firme e sem pestanejar.
O Buda sorriu e fez sinal para que o general se aproximasse e sentasse
próximo. O general fez uma reverência. - General Siha, o senhor tem alguma coisa para me dizer, ou perguntar?
Siha olhou para o Buda e disse: - Senhor Que o Mundo Venera! Mestres de outras religiões disseram-me que o
asceta Gautama prega a inação, dizendo que o homem é presa do destino e é
incapaz de agir livre e autodeterminadamente. Ou dizem que o Senhor é um
aniquilacionista, que ensina que nada permanece após a morte; ou que o
senhor ensina a ter ódio do mundo - essas afirmativas são verdadeiras? Ou
são meras calúnias?
O Buda respondeu gentilmente: - General Siha, eu não sei com que sentido esses mestres proferiram estas
palavras a meu respeito. Se elas forem compreendidas da maneira que explico,
então concordarei com elas: eu ensino a evitar o mal na ação, palavras e
pensamentos. Neste sentido, de fato advogo a "inação". Além disso, ensino
que as más ações podem ser aniquiladas destruindo-se as raízes da ânsia, da
raiva e da ignorância no coração das pessoas. Neste sentido, talvez possa
ser chamado de "aniquilacionista". E, finalmente, de fato abomino todas as
ações más, e neste sentido pode-se dizer que ensino a "odiar" o mundo...
General Siha ficou surpreso com a positividade da resposta dada pelo Buda.
Sem uma só palavra de crítica para com os outros mestres, Ele conseguiu usar
as palavras mal-intencionadas dos outros para demonstrar a Sua própria
doutrina.
- Este homem é extraordinário!, pensou Siha, enquanto
se preparava para colocar outra pergunta.
- Senhor Que o Mundo Venera! Alguns mestres de outras
religiões dizem que és um asceta extremado, que ensina a mortificação do
corpo; outros dizem que és um quietista, ensinando o quietismo como
consolação. Estas afirmações são corretas?
- General Siha, eu sou aquele que incessantemente
pratico a fim de cortar as raízes do mal, em pensamentos, palavras e atos.
Neste sentido, sou um asceta. E eu advogo tal prática ininterrupta, de
maneira que as pessoas possam ser direcionadas para o reino da perfeita paz
- e neste sentido, eu ensino a "consolação".
Enquanto ouvia o Buda respondendo tão calma e razoavelmente, um sentimento
de profunda fé surgiu em Siha: "o asceta Gautama é verdadeiramente aquele
que percebeu a verdade. Ele seguramente é um Buda que, pelo poder da
Sabedoria e Compaixão, transforma tudo o que é impuro em puro, e todo mau
Karma em bom". Cheio de alegria, ele fez uma reverência e disse ao Buda, com
toda a sinceridade: - Senhor Que o Mundo Venera! O Senhor mostrou a verdadeira Lei para mim, um
seguidor de outro caminho. É como se levantasse uma árvore caída, ou se
houvesse mostrado o caminho para aquele que está perdido. Tu és um supremo
sábio, um Buda. Por favor, permita que me torne seu seguidor, e tomar
Refúgio no Buda, no Dharma e na Sangha.
Contudo, para sua grande surpresa, o Buda não aceitou o pedido: - General Siha, o senhor é um eminente líder na terra dos Vajjias, bem
quisto e bem conhecido, e conceituado patrono da fé jainista. Seria melhor
que o senhor reconsiderasse bem a questão, antes de tornar-se um seguidor
meu.
Siha não podia acreditar no que estava ouvindo. Quando ele tornou-se adepto
do Jainismo, os monges jainistas saíram pelas ruas com bandeiras, que
anunciavam orgulhosamente a conversão de um homem tão influente e nobre...
Ainda assim, o Buda pedia para que ele refletisse cuidadosamente antes de
tornar-se um budista. Siha estava profundamente comovido: "o Buda não tem o
mínimo interesse de se aproveitar de minha pessoa influente para o benefício
de Sua Ordem religiosa; Ele pensa somente na propagação da Lei".
De novo Siha fez uma reverência refez seu pedido: - Suas palavras serviram somente para confirmar minha fé, oh Bem-Aventurado!
Eu desejo tomar Refúgio nas Três Jóias. Não desviarei desta resolução até o
fim de minha vida. Por favor, aceite-me como seu discípulo leigo.
Mas o Buda ainda não assentiu: - General Siha, por muitos anos o senhor deu generoso suporte aos monges
jainistas. O senhor não deve parar de dar para eles suas oferendas (3). O
senhor tem grande crédito entre os do povo, e antes de pensar em ingressar
num novo caminho, deve considerar cuidadosamente que efeitos seus atos terão
sobre aqueles que dependem do senhor.
General Siha sentiu seu coração esquentar. Os monges jainistas sempre
falaram mal do Buda, dizendo que Ele ensinava que somente aqueles que faziam
oferendas à comunidade budista é que ganhariam mérito. De fato, o Buda,
longe de trabalhar somente pelo benefício de Sua própria Ordem, disse que
Siha deveria continuar a dar suporte aos monges jainistas, mesmo se
convertido ao Budismo. O que mais poderia exemplificar melhor o espírito de
caridade, de religião verdadeira e virtude?
Siha não tinha mais qualquer dúvida ou hesitação. Pela terceira vez prestou
humilde reverência ao Buda e falou: - Ouvindo o Bem-Aventurado, minha fé está mais firme, como uma rocha. Pela
terceira vez, eu tomo Refúgio nas Três Jóias e prometo continuar a fazer
oferendas aos diversos monges, enquanto viver. Por favor, Senhor, aceite-me
como discípulo leigo.
Absoluta fé nos ensinamentos do mestre
Tendo sido aceito como discípulo, General Siha logo pediu para que pudesse
fazer oferenda de alimentos para a Sangha budista, e o Buda concordou. Cedo
na manhã seguinte, General Siha e seus atendentes receberam reverentemente a
Sakyamuni e seus monges, que foram levados a um salão, onde os lugares e as
refeições já estavam prontas esperando. Quando o Buda e os monges terminaram
a refeição, Siha chamou todos os membros da casa e pediu que o Buda falasse
algo sobre os méritos de se fazer oferendas. Sakyamuni respondeu:
- Aquele que dá generosamente para aqueles em necessidade obtêm os seguintes
benefícios: 1- é amado por todos, 2- tem sempre amigos, 3- é respeitado por
todos, 4- não sente vergonha ou medo perante seus semelhantes. Além destas
quatro coisas, General Siha, existe ainda um benefício futuro que é renascer
nos planos divinos de beatitude, devido à generosidade nesta vida.
General Siha ouvia atentamente às palavras do Buda, e disse: - Bem-Aventurado, eu conhecia os quatro benefícios ligados à prática de se
fazer oferendas, mas desconhecia o benefício futuro. Mas o Senhor nos disse
que aquele que dá generosamente renasce nos planos de beatitude. De hoje em
diante, com completa fé, praticarei como instruis.
O Buda Sakyamuni então ensinou a Siha as Quatro Nobres Verdades e o Nobre
Caminho Óctuplo, e retornou com seus monges para o mosteiro de Telhados
Altos. Siha e seus atendentes, tendo encontrado tão nobre doutrina pela
primeira vez, estavam muito felizes. Então Yasomati, sua filha, com os olhos
brilhando de felicidade, fez um pedido ao general: - Pai, eu também gostaria de realizar um ato meritório. Não há alguma
maneira de fazê-lo?
Siha sabia que Yasomati era uma jovem talentosa e virtuosa, e assim ele
convidou o Buda e aos monges para tomarem o desjejum da manhã seguinte,
desta vez o convite em nome de Yasomati. Após ouvir o Buda pregar, Yasomati
fez votos de trabalhar para a iluminação e assim lançou a fundação de um
futuro feliz, pela prática regular da doação generosa.
Além disto, a sobrinha de Siha, chamada Sihah, ao ouvir aos sermões do Buda,
foi prontamente tocada, que acabou por pedir a permissão de seu tio para
entrar na Ordem como monja. O general concordou e o Buda a admitiu na Ordem.
De acordo com o Therigatha (Hinos das Irmãs), a Irmã Sihah devotou-se
arduamente à prática meditativa por sete anos, mas não logrou a iluminação,
porque ainda carregava muitas paixões. Desapontada, ela foi só para a
floresta, passou uma corda por um galho de árvore, e estava prestes a se
enforcar, quando, neste exato momento, suas ilusões remanescentes caíram por
terra e ela atingiu a iluminação. Ela viveu até idade avançada e foi
reverenciada como uma monja realizada.
Assim aconteceu, que o General Siha, seus familiares e atendentes, de
fervorosos jainistas, tornaram-se devotos budistas, através do encontro com
o Buda. Após sua conversão, Siha continuou a realizar trabalhos de caridade,
vivendo feliz, e sendo respeitado e considerado em alta estima pelo povo
Licchavi.
(1) A Índia antiga não era um país, mas reinos diversos, alguns coligados,
outros não. E o que impressiona nos sutras é a descrição de reinos
prósperos, em contraste flagrante com a Índia pobre de hoje. (2) Sempre houveram adeptos do Jainismo nesta área; de fato, o fundador
desta religião, Nigantha Nataputta, foi um conselheiro da casa real de
Vajjia. (3) Faz parte da religiosidade indiana que os monges, ascetas e homens
santos de suas as religiões sejam assistidos em suas necessidades diárias,
sendo uma delas a alimentação. Nos tempos de Buda, haviam diversas correntes
religiosas antagônicas, que procuravam por prosélitos, assim como hoje fazem
as religiões cristãs; e fazer oferendas de comida era uma conseqüência
natural de se adotar uma determinada religião. Era um costume já arraigado;
daí a questão ser relevante para Siha.
Desenhos Sandro Neto
Ribeiro Fonte:
Zenno Ishigami, Revista
Dharma World, 3/1983. http://www.geocities.com/callceb/Discipulos.html
Referências bibliográficas |